As melhores lembranças que tenho da Feira das Mercês têm já muitos e muitos anos. São de quando, ainda criança e sempre na companhia dos meus Pais, se fazia dela visita obrigatória a cada ano. Muitas vezes a pé e outras tantas de automóvel, lá tínhamos de marcar presença. Nessa altura começava logo cá em baixo, junto à Estação de Comboios, logo a seguir à passagem de nível que há muito não existe. Fizesse sol ou chuva era um mar de gente e a subida fazia-se por entre um corredor de vendedores como nunca havia visto igual.
Quase como um ritual a Feira das Mercês marcava o momento do ano para comprar o guarda chuva, as botas de borracha ou de couro, prontas para o inverno, que era rigoroso em chuva e frio. Muitas vezes as roupas mais quentes eram também aqui compradas, não havia cá shoppings nessa altura. Compravam-se cobertores para a cama e os meus Pais aproveitavam também para comprar uma série de coisas relacionadas com a agricultura.
Os doces e os frutos secos eram também uma das minhas paixões. Havia de tudo um pouco. Lembro-me bem de nesse tempo haver alguns problemas de racionamento em certo tipo de produtos, mas aqui parecia que nunca faltava nada. Parecia que estava sempre tudo bem.
A Feira das Mercês era também especial pela oportunidade, quase tradição, durante alguns anos, de lá ir comer, almoçar ou jantar, sendo o prato escolhido sempre ser a mítica Carne Às Mercês.
Nesse dia, normalmente ao domingo, chegavamos à Feira bem cedo, passeávamos por toda a Feira, e nunca me esqueço do aroma que nos acompanhava desde o instante que passávamos aquelas escadinhas quase a chegar lá ao cimo: Carne Às Mercês! Desde cedo em fogo brando, quase como num chamamento silencioso, inebriante e mágico, sendo que na altura o mais difícil era escolher o sitio onde a comer. Como adorava aquela carne.
Nos últimos anos, entre cancelamentos da Feira, alterações ao espaço e remodelações que só o passar dos anos conseguirão explicar, perdeu-se muita coisa, creio até que se tem perdido demais, tendo a Carne Às Mercês sido transformada numa espécie de pica-pau de porco (em mau), onde até pickles e azeitonas pretas de lata levam a compor.
Este ano terá sido mesmo a pior experiência neste aspecto. Chegado à Feira até pensava que não havia este ano quem o tivesse na ementa. Para além de não sentir aquele aroma delicioso e o adiantado da hora já o obrigar, fui passando por bifanas, cachorros quentes, hamburgers, couratos até que, quase já sem acreditar, lá estava um local para o ambicionado repasto. Quem me mandou a mim entrar pelo lado contrário.
Depois de algum tempo e entre peripécias que não interessam para o tema, lá chegaram as carnes. Batata frita com pele a tapar a carne, montes de pickles, uma ou outra azeitona e a carne por baixo numa aguadilha um pouco estranha. Afasto as batatas e assaltou-me o palato uma carne rija, sensaborona e onde os pickles eram de facto a salvação para espicaçar um pouco o que para ali ia. Uma desilusão.
Saí dali com vontade de ir à procura da verdadeira receita da Carne às Mercês e por entre alguma pesquisa e ajuda de uma Senhora com muita experiência de vida, lá consegui o que mostro abaixo, sendo que quando mostrei esta fotografia à dita ouvi a seguinte exclamação: "Aquilo é limão? Limão na Carne às Mercês? Modernices...".
Começo então pela lista de ingredientes necessários. Não é longa, mas é baseada naquilo que havia muito por aqui, especialmente as folhas de louro, o porco e derivados e o vinho, que muitas vezes ali chegava já o da colheita do ano.
- 1 Kg Carne de Porco (Cachaço ou Rabadilha) Interessa ter alguma gordura
- 1 Copo de Vinho Branco
- 125g de Banha de Porco
- 1 Colher de Sopa de Pimentão em Pó ou Colorau
- 1 Colher de Sopa de Sal
- 4 ou 5 Dentes de Alho
- Pitada de Pimenta Preta
- Folhas de Louro
Comece por cortar a carne em pequenos cubos. Não devem ser tão grandes como os cortados para os rojões de porco, apenas um pouco mais pequenos. Temperar a carne com o pimentão em pó, o sal, a pimenta preta, os alhos e as folhas de louro (muitas) e envolver bem.
De seguida, junte o vinho branco, volte a envolver e reserve no frigorífico durante pelo menos 24 horas. Não há forma da carne ficar sem sabor após uma jornada como esta.
No dia seguinte, coloque a banha de porco numa espécie de bloco, em cima da carne e leve assim ao forno, em temperatura baixa, 120º a 140º, durante aproximadamente 4 horas. Desta forma iremos simular a manhã de Feira ali lentamente a cozinhar, praticamente sem fervilhar, com a banha a derreter lentamente, a forma um espécie de nata que impede que a carne seque.
Após este tempo de lento cozinhar, passe a carne para o lume do fogão e aumente o calor por forma a fazer com que a carne frite e reduza o liquido que a embebia. Resultado. Uma carne que quase se derrete na boca, cheira de sabor, com um molho mais denso, apurado e pronto a juntar-se a umas fatias de pão saloio e um copinho de vinho tinto. As batatas fritas só vieram mais tarde e começaram por ser aos cubos.
Gostava que um dia se preservassem mais este tipo de coisas. Também fazem parte da nossa história. Não são apenas os monumentos que devem ser cuidados. A nossa cultura gastronómica também deve ter um lugar especial.
Que tal uma actividade relacionada com este prato na próxima Feira das Mercês?
Uhhiiiii a muiiiiitooo tempooo...
ResponderEliminarComo os tempos mudam! Morei paredes meias com essa secular Feira! Era só atravessar o ( Rossio) entre a minha casa,e a Quinta das Rosas! Eram dias marcantes para nós habitantes
ResponderEliminarTudo o que descreve é real. Ontem fui comer a Carne às Mercês, na tentativa de recordar a minha infância. Uma verdadeira desilusão. Batata frita, pickles e azeitona. Mais parecia uma carne de porco alentejana.
ResponderEliminarPerdem se as tradições. Tenho 30 anos e sempre vivi antes da passagem de nível na verdadeira "Mercês" e a minha infância e adolescência foi sempre marcada pela verdadeira feira. Tal e qual como foi descrito 🤞
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